quarta-feira, 20 de junho de 2018

os mortos e os fósforos



 Há 50 anos, o jornalista e poeta Pedro Alvim escreveu:
“Era ao cair da tarde – e havia mortos. Todos muito juntos, enlameados, compridos. Alinhados, distanciados para sempre, ali aguardando o arrumo definitivo. Ali, ali no cimento frio de um quartel de bombeiros, no fim de um domingo de Inverno. Eu estava ao telefone, um telefone de moedas de cinco tostões, a dar para o jornal o número de mortos, os seus nomes, as suas idades. Ia escurecendo, escurecendo, e eu já não via os nomes escritos à pressa, abreviados, secos.

Um bombeiro, uma pilha nas mãos, tentava auxiliar a minha leitura, uma leitura triste, sincopada, hesitante de quando em quando. Eu sabia que tinha os mortos todos atrás de mim, indiferentes, quietos, não se importando absolutamente nada que lhes trocasse os nomes. Mas eu não queria cometer o mínimo erro, o mais pequeno deslize.

“Se tu és João” – dizia para mim – “és João. E se o teu nome é Mário, o teu nome será Mário. E caso te chames Rosa, não te chamarei Lucília.”

E teimava, teimava em ser exacto, pedia, pedia ao bombeiro que mantivesse o foco da pilha sobre o papel em que tinha escrito os nomes dos mortos. E carregava nas moedas de cinco tostões, mantinha a ligação telefónica, identificava-os um a um.

O tempo passava, o tempo passava sem luz eléctrica, e eu estava sempre ali ao telefone, e os familiares dos mortos iam entrando, (que longa bicha!), identificavam os mortos, os nomes dos mortos eram-me dados, e eu dava os nomes dos mortos ao jornal. Ouvia o choro dos vivos, ouvia o silêncio dos cadáveres, ouvia a noite lá fora – Depressa! Depressa! – diziam-me do jornal – Depressa que é para a terceira edição!

Iam-me faltando as moedas de cinco tostões, sentia-me aflito, pedia que me trocassem moedas de cinco, dez escudos. E os nomes dos mortos continuavam na minha boca, lidos um a um, o mais exactamente possível.

Como um preito de homenagem. Como um choro.

Chegavam aos meus ouvidos pormenores da tragédia, da chuva, da lama. Eu carregava nas moedas de cinco tostões, afligia-me com o seu desaparecimento contínuo e, automatizado já, ia lendo os nomes dos mortos à luz da pilha.

Escuridão total.

– Acabou-se a carga! – disse o bombeiro.

O suor tomou-me o corpo todo – e os meus dedos amarfanhavam o papel com os nomes dos mortos ainda não transmitidos.

E agora? E agora? Agora que a pilha tinha dado de si – que fazer?

– Acendam fósforos! – gritei – Estes fósforos!

E assim foi: à chama tremida do enxofre, dos fósforos, acesos um a um, fui lendo o nome dos mortos que restavam, que estavam ainda no papel, sem o mais pequeno deslize.

“Se tu és João” – dizia para mim – “és João. E se o teu nome é Mário, o teu nome será Mário. E caso te chames Rosa, não te chamarei Lucília“.

Quando, finalmente, abandonei o telefone, ganhei a rua, respirei a noite, apeteceu-me loucamente um cigarro, um cigarro que me turvasse, um cigarro para esquecer aquilo tudo. Meti, os pulmões ansiosos, um cigarro na boca – mas não pude, não pude fumar, não pude acender o cigarro: os mortos tinham queimado todos os meus fósforos”.

domingo, 18 de março de 2018

Paradoxum



No final de um período pessoal muito especial, voltamos aos sentimentos antagónicos.
Seguramente que nas nossas memórias de infância, onde o tempo nos dizia para esperar, guardamos momentos vividos em que o desejo de ficar se digladiava com a vontade de ir para regressar...

Estas contradições emocionais talvez traduzam em parte a enorme complexidade da mente humana… num desafio permanente e ambivalente de viver e sentir o presente, nostálgico com o passado e ansioso pelo futuro.

Por paradoxal que possa parece, quantas vezes não vivemos igualmente, a felicidade antecipatória de uma ocasião, e a melancolia de, estando ainda a vive-la, sabermos que é tão, mas tão efémera…? quantas vezes não abdicamos de viver um presente que já não sendo passado ainda não é futuro…?

Recordo uma vez mais a frase de um poema de Ricardo Reis: “Sê todo em cada coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes”. Recordo e de alguma forma adapto para: “vive todo em cada coisa. Vive quanto és no mínimo tempo que tens”…

Aquele tempo que já lá vai, diz-nos hoje que já nem ele pode esperar… na azáfama avassaladora em que vivemos, parece que a própria hora vive já atrasada…

Foi muito bom e estou muito satisfeito… não sabia se seria capaz da forma com
o fui… mas já está…

agora que começa o dia do pai, termina o tempo do pai…

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Completa Perda!

A vida que tão bela é de viver, recorda-nos de tempos a tempos que a finitude pode muito bem ser simplesmente plenitude!
Vai longe o mês de março do ano de 1992. Num tempo em que Coimbra era muito mais longe de Lisboa do que o é hoje, Londres, Paris ou Berlim.
Vivíamos tempos de pós entrada na União Europeia e curiosamente também de pós entrada no Ensino Superior. Os docentes estavam em greve. Estavam todos menos a diretora. Absolutamente solidária com as reivindicações, garantiu a recepção de mais uma turma de alunos, seguramente pela resposanbilidade por ser diretora, mas também, como mais tarde me confidenciou, pelo "direito que os alunos têm de ter aulas". Vivíamos tempos de personalidades com história e com convicções. Vivíamos tempos em que o duradouro era bem mais sublime que o efemero... em que o respeito pelo passado vivido era bem mais relevante que o fugaz presente destorcido ...
Durante 3 anos tive o enorme privilégio de conhecer a pessoa para lá da Diretora/mulher... foram muitos acontecimentos... muitas experiências... tantas aprendizagens...
Para além de aluno da Bissaya Barreto, ter sido desde muito cedo dirigente associativo e membro da Comissão de Gestão (naquele tempo a Comissão de Gestão da escola era constituída por 5 elementos:  a diretora por inerência, e 4 eleitos de entre os pares, um docente, um funcionário e dois estudantes) permiti-me trabalhar bem de perto com a Sr.a Enfermeira Delmina do Anjos Moreira.
Rigor, Frontalidade, Exigência, Justiça e Altruísmo. Tão simples mas tão difícil...
Mas a perda de hoje, como que encerra um ciclo.
Em mais de 25 anos de atividade profissional, cruzei-me com pessoas boas/más, fascinantes/dispensáveis, memoráveis/indiferentes... mas desta geração, que de alguma forma hoje fisicamente se extingue, recordo três pessoas absolutamente inigualáveis ... com as quais, apesar de muito mais novo, tive a honra de trabalhar...
Mariana Diniz de Sousa, Marília Viterbo de Freitas, Delmina dos Anjos Moreira.
Conheci muito bem as diferenças de pensamento entre elas...
Senti de forma marcante o que hoje se apela a "relação intergeracional"...
Percebi e aprendi que a construção do futuro faz-se com a força da diferença de pensamento, e como tal, o mais importante é pensar e deixar pensar ...
Vi como o respeito pelo outro é tão ou mais relevante que o respeito por nós próprios...
Compreendi a dificuldade dos embates, quase sempre longos, mas também o sabor das, mesmo que pequenas, conquistas... e que logo de seguida haverá mais trabalho, mais desafios, é mais exigências!
Estas três Senhoras, cada uma da sua forma, foram e são as minhas principais e mais antigas referências.
Claro que há saudades... claro que há tristeza...
mas a vontade de perpetuar os valores que me ensinaram, transmitindo-os aos outros, terá de ser superlativa!







sábado, 13 de janeiro de 2018

democrata, social e republicano

Não tenho filiação partidária mas tenho posição política.
Sinto-me um democrata, social e republicano, que acredita numa sociedade plural, em que as leis de mercado só serão equitativamente justas se existir um Estado forte com mais capacidade de regular do que de subsidiar.
Nas eleições internas do PSD teria votado Santana, tal como nas dos PS teria votado Seguro...
Talvez por ter esta 'incapacidade' de acompanhar as maiorias, me mantenho afiliado...